OFICINA DAS MAÇANETAS, ALUCINAÇÕES E VISÕES

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terça-feira, 2 de agosto de 2011

DE VOLTA AO C.A.

              Queria, eu, de fato escrever uma carta de amizade distante, lá dos pátios da infância, do primeiro colégio. Tive minhas primeiras vertigens artísticas naquele gigantesco curral de mentes, e então por isso suas amarras não me foram palhas. Mas lá também tive o meu primeiro confidente e, logo de susto, frustração tão doce que mesmo tão outro moço ainda se sente, a minha primeira miséria. Sim miséria digo eu, como poderia dizer amor. E lá nos meus confins criativos forjava flores, desenhos, presentes de legítimo artesão, para que meu leal cúmplice, Fosse confiar ao julgo daquela que me trouxe tanta pobreza, enquanto eu esperava o seu deleite e gratidão que nunca visitaram-me, doce vadia─ Que me acreditem mais na piada do que no insulto─ Mas tinha bem maior eu, tinha um amigo de lembrança infinita, um comparsa sem interesses. 
              Não vão tão longe os anos, mas que vão anos vão. Hoje tenho eu meus dezenove verões, e que verões, o quanto já me rejuvenesceram. Por que ruas estará vagando Davi, que nunca mais o vi ? Não consigo ressuscitar os últimos registros memoriais que mastigamos juntos.
               Naquela época, tinha ele uma estatura de pouco alcance, cabelos... Não sei se lisos ou crespos, se castanhos ou verdadeiramente negros... Lembro-me bem é dos olhos, olhos de desinteresse, bem lesos mesmo, pareciam planejar outras empresas além do estudo, queriam descansar, é, é isso, queriam espreguiçar bem a sua preguiça intelectual. De fato muito engraçado.
              Repensando esta fase primeira de minha consciência, indagando sobre este primeiro amigo, me aflige não saber por onde anda alguém que já foi tão meu, algo que me envelhece e me faz descansar naqueles bosques, que me retrocede aos primeiros vagidos da existência, afinal é uma urgência de todos os tempos futuros a este. E mais, se tanto me pergunto sobre as ruas que são donas de Davi, é justamente porque não sei em que ruas estou andando? É como querer encontrar Davi para não mais me perder? Faz sentido esse raciocínio?
              É interessante o medo que segredamos, por vezes, em alguns cenários, nas perguntas tão desesperadas. Impressionante como certas lembranças, bem menos frementes, nos dão a sensação de poder, pois é um tempo que longe voa e não mais lança suas mãos de ventriloquista. Verdadeiramente intrigante como tentamos nos refugiar no que não mais vigora quando o vento não é bom.
               Voltando a minha história contemporânea a de Davi, lembro que tínhamos contra-pontos no comportamento. Davi comia a merenda da escola, eu não, achava aquilo tudo um pouco nojento, com crianças melequentas que me fechavam o apetite. Gostava eu de desenhar e jogar bola, ele preferia soltar pipa, de rueiro que era, e rodar pião. Gostava ele de correr por todo o colégio, eu preferia ler uma curta estórinha. Não me vejam como criança fresca, mas é que conheci a liberdade da rua somente com oito anos. Gostávamos muito de assistir aos animes da época, único ponto consensual, mas é deveras insuficiente para levantar uma amizade que se pendura sem esforço no relicário da saudade. Difícil perceber no adulto o mesmo senso de respeito ao outro que possuíam aquelas duas crianças que se perderam, há tempos, juntas.
                É... Naquelas ambições patéticas, se é que haviam ambições, não compreendia eu uma necessidade primitiva, inconsciente, pelas palavras. Não obcecava a maldição, nem tinha ciência de tal. Não ouvia esse ultimo apelo das palavras que descubro, essa insistência que elas tem em querer ser cantadas, acompanhadas de um arranjo sem preconceitos, verdadeiro. Não era tão lisérgico, nem tão inseguro. Hoje sou outro, como amanha não mais me reconhecerei. Medo e coragem, dor e prazer, sinto eu quando penso na vida, e num súbito e curto momento de vitória medrosa, me perguntei o que houvera com Davi.
                Vá lá Davi, que a idade não parou, apenas eu que senti, por um pensamento, a vertigem do abismo que é a vida real.